sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O bolo de queijo

Todo o dia sentava-me à beira do lago, levantava o vestido até a coxa e sentia sobre meus pés e minhas pernas, o frescor das águas cristalinas que eram aquecidas com o calor dos raios do sol de primavera.
No mesmo local cantava as cantigas que minha bisavó havia me ensinado até o dia do leito de sua morte. Assim permanecia até a hora do almoço, quando mamãe me chamava:
- Caroline! Venha minha filha, a comida está servida.
Eu respondia:
- já vou mamãe. Despedia-me do lago por alguns instantes, lavando minha face.
Mamãe me servira com muito carinho, e dizia para tomar cuidado e não queimar os lábios com a comida cálida do fogão a lenha.
Morávamos em um morro próximo a cidade, ao redor de casa tinham várias árvores, das quais eu implicava em subir para catar as formiguinhas. As flores que a primavera trazia, ornamentavam o jardim, do qual eu costumava me agachar os cantos para sentir o perfume das flores e observar suas mais diversas características.
Aos fins de tarde mamãe não se preocupava com meus desaparecimentos, pois sabia que se não estivesse no lago ou no jardim, estaria admirando o pôr do sol em qualquer lugar próximo, e ouvindo o canto dos pássaros, melhor música que eu conhecera depois das cantigas de minha bisavó.
Desde pequenina fazia esta estimativa com a natureza e comigo mesma, descobrindo o mundo de forma propicia para mim.
Eu tinha convivência somente com mamãe e algumas colegas de escola, por este motivo eu desconhecia a maldade humana.
Depois de completar meus quinze anos eu já não queria ir ao lago todos os dias, às vezes eu ia ao jardim, ver o pôr do sol não me encantava tanto, os pássaros já nem ouvia e as cantigas de minha bisavó eu havia esquecido. Ao invés de fazer o que era de costume, preferia ficar horas interrogando mamãe. Ela me respondia até onde era conveniente, muitas vezes eu não compreendia, contudo me calava para não deixa-la encabulada.
Porém havia um fato que me deixava com muito pesar, era só mencionar palavras sobre meu pai do qual eu nem sabia o nome que mamãe hesitava. Eu estava no direito de saber sobre minha paternidade, porém a única coisa que eu deduzia sobre o mesmo, é que tinha uma condição de vida estável, pois que mamãe não trabalhava e vivíamos com conforto.
Eu percebia a nostalgia nos olhos de mamãe ao tentar pronunciar qualquer coisa que fosse sobre ele, os lábios dela se estremeciam com a mais genuína vontade de me esclarecer, contudo ameaçava lágrimas até eu prometer não repetir a pergunta.
Quando mamãe ia para a cidade, eu a acompanhava, pois ela me dizia que já era uma mocinha e precisava conhecer pessoas novas. Modestamente, as pessoas me olhavam de uma forma diferente, principalmente os homens. Mamãe dizia que isso ocorria porque minha pele era tão suave quanto o vento em dias tranqüilos, que meus lábios eram vermelhos iguais as rosas de nosso jardim e meus cílios longos e enrolados realçavam ainda mais os mistérios de meus olhos negros. Certa vez um amigo dela mencionou que minha simpatia e pureza ao falar eram triunfais.
Mamãe começou a adoecer, durante um mês ficou de cama. Quando o médico obteve o resultado dos exames teve de me dizer que a doença de mamãe era incurável, pois seu cérebro já havia sido tomado pelas dores de um câncer.
Fiz de tudo para vê-la bem, e quando não me fazia em sua presença não hesitava chorar. Zelei e orei por ela até o ultimo instante, eu acreditava cegamente no milagre da ressurreição sem o acontecimento da morte, porém chegou o maldito dia em que me deixou, eram seus últimos suspiros e entre uma inalada e outra disse-me para ler o livro que estava na cabeceira de sua cama, e sua ultima frase:
- eu te amo e sempre estarei ao seu lado!
Ouvindo meu choro incontrolável deixou uma lágrima rolar e esboçou um sorriso, esta foi a sua despedida, lembro-me como se fosse hoje, a alegria de seu descanso e a dor de sua partida. Meu amor por ela é imutável e a lembrança daquele dia está intacta em minha memória como o pior dia de minha existência.
Eu não ousava sorrir, e começar a ler o seu livro de cabeceira foi uma das coisas mais difíceis, pois que ele me parecia descrevê-la, e realmente não fui forte para ler sequer duas páginas.

Após sua morte ia de vez em quando para a cidade, tinha alguns amigos que me forneceram vigor, precisava distrair - me, conhecendo pessoas sábias e cultas, muitas dessas foram alicerce para minha superação. E foram nesses estreitos laços de amizade que resolvi casar-me com alguém que se apaixonou por mim e me tinha com muito respeito.
Casei-me de forma tradicional, entrei na igreja sozinha, eu não tinha um pai que me pudesse acompanhar. Engravidei, e a filha que tanto amo se chama Manuelle. Eu tinha uma família, porém não era feliz, pois não havia me casado por amor e sim para fugir da solidão.
Tive de suportar a dor de meu erro, até o dia em que percebi que já era uma mulher, já era madura. Decidi por divorciar-me.
Não me interessava mais saber de meu pai, joguei tudo para o alto, sonhos e razões, pois eu havia perdido minha pureza que era minha maior virtude, casar-me com alguém que não fui capaz de amar me envergonhava, e dessa vida o único feito que me orgulhara era minha menina. Eu vivia perseguida pelo temor de que minha filha sofresse as conseqüências de meu ridículo ato.
Enfim, estava decidida,
Chamei um advogado até minha casa para resolver os papéis da separação e sou surpreendida pela presença de um homem chamado Paulo, robusto, alto, olhos verdes e pele morena, com um olhar tão humilde e sincero, um sorriso que envolvia toda a sua graciosidade em termos de beleza e simpatia. Tão pouco pude perceber que ele também me olhara, e fez um comentário:
- sua inocência é encantadora, seus lábios são tão vermelhos quanto as flores do jardim e sua pele é tão suave quanto o vento em dias...
Eu o interrompi:
-... em dias tranqüilos?
- isso mesmo. E me perguntou esboçando aquele sorriso.
- alguém já havia lhe dito?
- sim, minha mãe...
Me descreveu da mesma forma que... fiquei sem reação diante de seus comentários, ele quis me pedir desculpas pela ousadia, porém calei seus lábios com um delicioso beijo. Incontrolável era a fúria da mulher que passei a ser na sua presença, perdi toda a vergonha que me aninhava em tristeza para transformá-la em uma vida cheia de graça e alegria.
E descobrimos juntos que o amor existia, ele ama minha filha como se fosse um fruto de nosso amor, aliás com ele eu descobri o que era fazer amor, pois até então eu só conhecia o prazer. Criei coragem para ler todas as páginas do livro, e fui apanhada subitamente com tudo que ali permanecia escrito.

Porque você não me deu a alegria de ter uma presença masculina em minha vida? Uma presença qual pudesse se dirigir ao altar comigo ou me abraçar na hora da morte de mamãe? Você seria a única pessoa que entenderia tanto quanto eu como dói à falta dela.

O livro foi minha mãe quem escreveu, era a letra dela traçada em linhas que revelavam sua impressionante história, foi o livro que considerei mais sublime depois da Bíblia, o único lugar que possuía a resposta de minhas indagações, que haviam sido esquecidas até então. Ela teve vergonha de me revelar que amou um homem casado, ela teve a humildade de me poupar, e sofrer sozinha uma vida inteira por alguém que já possuía família.

Porque você a abandonou?
Não é justo que dois corpos preenchidos de amor na alma tenham de viver separados pela simples lei que os humanos impõe.
Tenho pena que você tenha priorizado em sua vida a reputação e não a felicidade.

Mais saiba que a casa é a mesma, ela já não se faz presente, porém basta olhar para mim e sentir sua presença, pois que tenho os olhos negros iguais aos dela, e cheios de mistérios. Não era assim que você a descrevia?
Tenho um coração que aprendeu a amar de novo, e espera pelo abraço daquele que se chama pai.
Você é única pessoa que me falta dizer te amo.

A fachada da casa mudou de cor, porém o caminho não mudou de rumo, basta seus passos se apressarem, pois meu coração esta ansioso por conhecer esse homem que é um quarto de meu ser.
Espero pelo dia em que você virá, e quando você chegar vou pôr água esquentar e preparar seu chá preferido e colocar o bolo de queijo para assar.

Obs: esta carta foi enviada com o endereço que estava no livro, não se sabe se ela chegou ao destino, nem mesmo se o pai de Caroline ainda esta vivo, porém todas as tardes após Paulo fazer o fogo, ela coloca a água esquentar no fogão à lenha, enquanto isso Manuelle a ajuda preparar a massa do bolo de queijo, pois sua mãe revelava no livro que era o preferido de seu pai.



Autora:
Ellen Caroline Pereira